“Eu ando com medo. Tenho mulher, filha e já percebi
que esse pessoal é capaz de tudo”. O relato poderia ser de muitos
moradores de Rio Real, a 202 quilômetros de Salvador, na divisa com
Sergipe. Mas, no caso, é do próprio juiz da cidade, Josemar Dias
Cerqueira. Não é a única autoridade local a andar por aí com receio. “Eu
circulo muito e tenho medo, né? A coisa está saindo do controle”, conta
o presidente da Câmara de Vereadores, Cleriston Barbosa.
Se juiz e presidente da Câmara estão com medo,
imagine o restante da população. A razão do temor coletivo está na
atuação da Polícia Militar local, comandada pelo major Florisvaldo
Passos Ribeiro, há dois anos à frente da 6ª Companhia Independente da PM
(CIPM), com sede no município. O major e seus comandados são acusados
de promover espancamentos, torturas, invasões de residências e prisões
ilegais. É o que revelam depoimentos formais e informais coletados pelo
juiz e pelo CORREIO.
Vítimas e parentes de vítimas ouvidas ontem pela
reportagem falam em atrocidades cometidas pelo major e sua tropa que
incluem até execuções. Nas contas do juiz, só entre março e maio deste
ano, foram dez assassinatos em circunstâncias “estranhas”, o que reforça
a suspeita da existência de um grupo de extermínio. “É sempre alguém em
um carro ou uma moto que chega, atira e vai embora. Desde que o major
assumiu (em setembro de 2011), isso aumentou muito”, avalia o
magistrado, que está há nove anos na cidade.
Viatura na frente da 6ª Companhia da Polícia Militar (CIPM-Rio Real), onde teriam ocorrido torturas e intimidações, segundo relatos coletados pelo juiz Josemar Dias
Diante dos fatos, juiz, presidente da Câmara e o
próprio prefeito assinaram um ofício enviado ao Ministério Público (MP)
pedindo investigação dos fatos. O problema é que Rio Real está sem
promotor titular há cinco anos. “Eu não posso tomar nenhuma decisão se
não for provocado pelo MP. O promotor é de Alagoinhas e acumula função.
Mas acho que já passou da hora de tomar providências”, explica o juiz.
Diversos documentos semelhantes foram enviados também à delegacia.
Morte
Um caso é emblemático na cidade: o assassinato do advogado José Urbano do Nascimento Júnior, 28 anos, morto em novembro do ano passado. Urbano levou dois tiros em um loteamento. Detalhe: o crime ocorreu meses depois de ele ter sofrido duas agressões de PMs.
Um caso é emblemático na cidade: o assassinato do advogado José Urbano do Nascimento Júnior, 28 anos, morto em novembro do ano passado. Urbano levou dois tiros em um loteamento. Detalhe: o crime ocorreu meses depois de ele ter sofrido duas agressões de PMs.
“Meu filho foi chamado de ‘advogadozinho de merda’
pelos policiais. Morreu depois de reunir as provas contra os agressores e
de processar um policial que xingou ele na internet”, relatou a mãe de
Urbano, a professora Maria Lúcia dos Santos.
A presidente da OAB - Seção Alagoinhas, Maryella
Gomes, encaminhou no mês passado um ofício ao juiz para comunicar
“condutas ilícitas” por parte da PM de Rio Real. “Tomamos conhecimento
de ameaças a cidadãos que comparecem às instalações, interferências nas
conversas de advogados e seus clientes com a presença de elementos
armados à paisana.
Chegou ao conhecimento que presos têm sido
conduzidos às dependências da PM e submetidos a sessões de pressão
psicológica e física, sendo negada a expedição de guias de corpo de
delito”, diz o ofício. O CORREIO não conseguiu contato com o delegado
Antonio Santana.
Juiz Josemar Dias teria recebido denúncias contra a PM
Núcleo
Segundo diversos relatos, os crimes que teriam a conivência do major - e muitas vezes sua participação direta - são praticados principalmente pelo chamado Núcleo de Informação, criado pelo comandante da 6ª CIPM.
Os policiais do NI circulariam à paisana, e um dos
carros utilizados pelo grupo, um Gol preto com vidros fumê, ganhou,
inclusive, apelido. “É o carro do corte”, revela o juiz. “O que nos
parece é que o major resolveu ser tudo na cidade: policial, prefeito,
juiz, carrasco, tudo ao mesmo tempo”, diz o juiz.
Uma jovem doméstica relatou à Justiça e ao CORREIO
uma dessas ações arbitrárias. Em junho deste ano estava dormindo na casa
de uma amiga quando homens armados invadiram o imóvel, torturaram ela, a
amiga grávida e em um rapaz que estava com elas.
“Nele usaram até saco plástico na cabeça. Bateram em
mim e na minha amiga. Rodaram com a gente no carro e apresentaram
drogas e armas na delegacia”, conta. O relato é semelhante ao que ela
deu em audiência ao juiz, como parte do processo que apura o tal crime
de posse de drogas e armas.
“Sistematicamente estou liberando presos com
flagrantes sem nenhuma consistência”, diz o juiz. Há ainda narrações de
agressões por meras infrações de trânsito. “Parei o carro em um lugar
atrapalhando o trânsito. Na abordagem policial estava sem habilitação.
Foi o suficiente para me espancarem e me levarem para a companhia. O
próprio comandante viu tudo e me xingou de vagabundo”, conta o cunhado
do presidente da Câmara de Vereadores, que preferiu não se identificar e
admitiu ter dado um soco no PM durante as agressões.
Há um mês o cunhado do juiz foi encontrado portando
uma arma. Foi preso e confessou o crime. “Não foi liberado sem antes
tomar umas porradas dentro da companhia. Mas esse definitivamente não é o
motivo de nosso pedido de investigação. Denuncio a PM desde o ano
passado”, diz o magistrado, mostrando documentos.
Os crimes atribuídos à PM de Rio Real estão sendo
investigados pelo Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações
Criminosas e de Investigações Criminais (Gaeco), do Ministério Público,
desde terça-feira. O MP informou que os promotores não comentariam o
caso.
Oficial se diz surpreso com denúncias e defende tropa*Thais Borges
Apesar dos relatos de medo da população de Rio Real,
o comandante da 6ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM), o
major Florisvaldo Ribeiro, disse estar “surpreso” com as acusações.
“Procuramos atender a segurança, mas nada é feito
com arbitrariedade. Mas entendo que o trabalho feito com seriedade pode
incomodar as pessoas que praticam atos ilícitos”. Segundo ele, os
crimes de roubo de carga e tráfico de drogas são frequentes na cidade - e
o combate da PM a esse tipo de ação teria motivado as denúncias. “Tem
muita gente infiltrada na alta sociedade envolvida”.
O comandante garante que os 96 homens da 6ª CIPM não
cometem excessos. Para ele, também não há possibilidade de os PMs
agirem sem o seu conhecimento. “Conheço o perfil da tropa e eles são
tranquilos. Isso é fruto de imaginação, uma forma vingativa para
desgastar o comando”.
Ele acredita que as prisões dos cunhados do juiz
Josemar Cerqueira e do presidente da Câmara de Vereadores, Cleriston
Barbosa, também podem ter motivado algum tipo de perseguição. “Há uns
dois meses, prendemos o cunhado do presidente (da Câmara). Ele
desobedeceu a abordagem e chegou a agredir um policial. Depois, há um
mês e meio, foi o cunhado do juiz, porque ele estava portando uma arma e
mirando em um rapaz. Mas eles foram encaminhados à delegacia e
liberados”, comentou.
O major confirmou a existência do Núcleo de
Informação (NI) e também que os policiais trabalham à paisana - no
entanto, hoje, o departamento é chamado de Seção de Missões Especiais
(SME). “É um trabalho de inteligência, de acompanhamento da conduta dos
policiais. Eles trabalham à paisana. São pessoas escolhidas a dedo, para
não fazer coisa errada”. Segundo ele, hoje a SME conta com cinco
policiais.
Com relação às denúncias de espancamento e morte do
advogado José Urbano Nascimento Júnior, Ribeiro confirmou que existiu um
“atrito” entre o advogado e três PMs, em janeiro do ano passado.
“Na época, instaurei um inquérito militar e eles
responderam. Os três foram afastados”, disse, referindo-se aos soldados
identificados como Ferreira, Hermes e Valnei. Já a segunda situação,
quando José Urbano foi espancado em julho de 2012, não teria sido
cometida por policiais da 6ª CIPM, mas da Companhia Independente de
Policiamento Especializado (Litoral Norte). “Mas, com relação ao crime
(a morte de José Urbano), tudo está sendo investigado pela Polícia
Civil. Não convivíamos muito, mas nossa relação sempre foi boa”.
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